sexta-feira, outubro 19, 2007

Elogio ao amor

Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade.
Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão.
Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.
Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.
Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido.
Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama.
Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo".
O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.
Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões.
O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem.
A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível.
O amor tornou-se uma questão prática.
O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.

Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.

Já ninguém se apaixona?
Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo,
o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha.
Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas,
a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,
o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".

Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos.
Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores.
O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor.
É essa beleza.
É esse perigo.
O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes.
Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.
O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu,
a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.

O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor.
A "vidinha" é uma convivência assassina.
O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino.
O amor puro é uma condição.
Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.
O amor não se percebe. Não dá para perceber.
O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma.
É a nossa alma a desatar.
A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.
O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária.
A ilusão é bonita, não faz mal.

Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra.
A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.
Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém.
Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente.
O coração guarda o que se nos escapa das mãos.
E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama,
não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber.
É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não.

Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.

Miguel Esteves Cardoso, in "O Expresso"

quinta-feira, dezembro 21, 2006

O Mundo

A música embala-me
Um limbo etéreo
transporta-me a alma
para junto de quem
me levou a ouvi-la
pela primeira vez...

Solto então as lágrimas
nas cordas de um violino
sensível
que esconde uma face
cinzenta
intocavelmente
sóbria

Por que não escutei antes
a soberba melodia?
Nunca conhecerei a tua música.

Anónimo

terça-feira, maio 16, 2006

Sempre Ausente

Diz-me que solidão é essa
Que te põe a falar sozinho
Diz-me que conversa
Estás a ter contigo

Diz-me que desprezo é esse
Que não olhas p’ra quem quer que seja
Ou pensas que não existe
Ninguém que te veja

Que viagem é essa
Que te diriges em todos os sentidos
Andas em busca dos sonhos perdidos

Lá vai o maluco
Lá vai o demente
Lá vai ele a passar
Assim te chama toda essa gente
Mas tu estás sempre ausente
Não te conseguem alcançar
Mas tu estás sempre ausente
Não te conseguem alcançar
Mas eu estou sempre ausente
Não me conseguem alcançar

Diz-me que loucura é essa
Que te veste de fantasia
Diz-me que te liberta
Da vida vazia

Diz-me que distância é essa
Que levas no teu olhar
Que ânsia e que pressa
Que queres alcançar

Que viagem é essa
Que te diriges em todos os sentidos
Andas em busca dos sonhos perdidos

António Variações

quinta-feira, março 09, 2006

Morrer lentamente

Morre lentamente quem não viaja,
quem não lê, quem não ouve música,
quem destrói o seu amor próprio,
quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem se transforma escravo do hábito,
repetindo todos os dias o mesmo trajecto,
quem não muda as marcas no supermercado,
não arrisca vestir uma cor nova,
não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente quem evita uma paixão,
quem prefere o "preto no branco" e os "pontos nos is"
a um turbilhão de emoções indomáveis,
justamente as que resgatam brilho nos olhos,
sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho,
quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da
chuva incessante, desistindo de um projecto antes de iniciá-lo,
não perguntando sobre um assunto que desconhece
e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.
Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo
exige um esforço muito maior do que o simples acto de respirar.
Estejamos vivos, então!

Pablo Neruda

terça-feira, fevereiro 21, 2006

O cerco

Já faltou mais para que um dia destes tenha de passar à clandestinidade ou, no mínimo, tenha de me enfiar em casa a viver os meus vícios secretos.Tenho um catálogo deles e todos me parecem ameaçados: sou heterossexual «full time»; fumo, incluindo charutos; bebo; como coisas como pezinhos de coentrada, joaquinzinhos fritos e tordos em vinha d'alhos; vibro com o futebol; jogo cartas, quando arranjo três parceiros para o «bridge» ou quando, de dois em dois anos, passo à porta de um casino e me apetece jogar «black-jack»; não troco por quase nada uma caçada às perdizes entre amigos; acho a tourada um espectáculo deslumbrante, embora não perceba nada do assunto; gosto de ir à pesca «ao corrido» e daquela luta de morte com o peixe, em que ele não quer vir para bordo e eu não quero que ele se solte do anzol; acredito que as pessoas valem pelo seu mérito próprio e que quem tem valor acaba fatalmente por se impor, e por isso sou contra as quotas; deixei de acreditar que o Estado deva gastar os recursos dos contribuintes a tentar «reintegrar» as «minorias» instaladas na assistência pública, como os ciganos, os drogados, os artistas de várias especialidades ou os desempregados profissionais; sou agnóstico (ou ateu, conforme preferirem) e cada vez mais militantemente, à medida que vou constatando a actualidade crescente da velha sentença de Marx de que «a religião é o ópio dos povos»; formado em direito, tornei-me descrente da lei e da justiça, das suas minudências e espertezas e da sua falta de objectividade social, e hoje acredito apenas em três fontes legítimas de lei: a natureza, a liberdade e o bom senso.

Trogloditas como eu vivem cada vez mais a coberto da sua trincheira, numa batalha de retaguarda contra um exército heterogéneo de moralistas diversos: os profetas do politicamente correcto, os fanáticos religiosos de todos os credos e confissões, os fascistas da saúde, os vigilantes dos bons costumes ou os arautos das ditaduras «alternativas» ou «fracturantes». Se eu digo que nada tenho contra os casamentos homossexuais, mas que, quanto à adopção, sou contra porque ninguém tem o direito de presumir a vontade «alternativa» de uma criança, chamam-me homofóbico (e o Parlamento Europeu acaba de votar uma resolução contra esse flagelo, que, como está à vista, varre a Europa inteira); se a uma senhora que anteontem se indignava no «Público» porque detectou um sorriso condescendente do dr. Souto Moura perante a intervenção de uma deputada, na inquirição sobre escutas na Assembleia da República, eu disser que também escutei a intervenção da deputada com um sorriso condescendente, não por ela ser mulher mas por ser notoriamente incompetente para a função, ela responder-me-ia de certeza que eu sou «machista» e jamais aceitaria que lhe invertesse a tese: que o problema não é aquela deputada ser mulher, o problema é aquela mulher ser deputada; se eu tentar explicar por que razão a caça civilizada é um acto natural, chamam-me assassino dos pobres animaizinhos, sem sequer quererem perceber que os animaizinhos só existem porque há quem os crie, quem os cace e quem os coma; se eu chego a Lisboa, como me aconteceu há dias, e, a vinte quilómetros de distância num céu límpido, vejo uma impressionante nuvem de poluição sobre a cidade, vão-me dizer que o que incomoda verdadeiramente é o fumo do meu cigarro, e até já em Espanha e Itália, os meus países mais queridos, tenho de fumar envergonhadamente à porta dos bares e restaurantes, como um cão tinhoso; enfim, se eu escrever velho em vez de «idoso», drogado em vez de «tóxicodependente», cego em vez de «invisual», preso em vez de «recluso» ou impotente em vez de «portador de disfunção eréctil», vou ser adoptado nas escolas do país como exemplo do vocabulário que não se deve usar. Vou confessar tudo, vou abrir o peito às balas: estou a ficar farto desta gente, deste cerco de vigilantes da opinião e da moral, deste exército de eunucos intelectuais.

Agora vêm-nos com esta história dos «cartoons» sobre Maomé saídos num jornal dinamarquês. Ao princípio a coisa não teve qualquer importância: um «fait-divers» na vida da liberdade de imprensa num país democrático. Mas assim que o incidente foi crescendo e que os grandes exportadores de petróleo, com a Arábia Saudita à cabeça, começaram a exigir desculpas de Estado e a ameaçar com represálias ao comércio e às relações económicas e diplomáticas, as opiniões públicas assustaram-se, os governantes europeus meteram a viola da liberdade de imprensa ao saco e a srª comissária europeia para os Direitos Humanos(!) anunciou um inquérito para apurar eventuais sintomas de «racismo» ou de «intolerância religiosa» nos «cartoons» profanos. Eis aonde se chega na estrada do politicamente correcto: a intolerância religiosa não é de quem quer proibir os «cartoons», mas de quem os publica!

A Dinamarca não tem petróleo, mas é um dos países mais civilizados do mundo: tem um verdadeiro Estado Social, uma sociedade aberta que pratica a igualdade de direitos a todos os níveis, respeita todas as crenças, protege todas as minorias, defende o cidadão contra os abusos do Estado e a liberdade contra os poderosos, socorre os doentes e os velhos, ajuda os desfavorecidos, acolhe os exilados, repudia as mordomias do poder, cobra impostos a todos os ricos, sem excepção, e distribui pelos pobres. A Arábia Saudita tem petróleo e pouco mais: é um país onde as mulheres estão excluídas dos direitos, onde a lei e o Estado se confundem com a religião, onde uma oligarquia corrupta e ostentatória divide entre si o grosso das receitas do petróleo, onde uma polícia de costumes varre as ruas em busca de sinais de «imoralidade» privada, onde os condenados são enforcados em praça pública, os ladrões decepados e as «adúlteras» apedrejadas em nome de um código moral escrito há quase seiscentos anos. E a Dinamarca tem depedir desculpas à Arábia Saudita por ser como é e por acreditar nos valores em que acredita?

Eu não teria escrito nem publicado «cartoons» a troçar com Maomé ou com a Nossa Senhora de Fátima. Porque respeito as crenças e a sensibilidade religiosa dos outros, por mais absurdas que elas me possam parecer. Mas no meu código de valores - que é o da liberdade - não proíbo que outros o façam, porque a falta de gosto ou de sensibilidade também têm a liberdadede existir. E depois as pessoas escolhem o que adoptar. É essa a grande diferença: seguramente que vai haver quem pegue neste meu texto e o deite ao lixo, indignado. É o seu direito. Mas censurá-lo previamente, como alguns seguramente gostariam, isso não.

É por isso que eu, que todavia sou um apaixonado pelo mundo árabe e islâmico, quanto toca ao essencial, sou europeu - graças a Deus. Pelo menos, enquanto nos deixarem ser e tivermos orgulho e vontade em continuar a ser a sociedade da liberdade e da tolerância.

Miguel Sousa Tavares in "Expresso" de 4 de Fevereiro de 2006

quarta-feira, novembro 30, 2005

Teus olhos entristecem

Teus olhos entristecem.
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.

Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.

Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.

Fernando Pessoa

quarta-feira, outubro 12, 2005

Respirar

Onde eu te via era onde estavas
e não partias entretanto nem chegavas

Com os teus olhos pelo vento leste
longamente ondulados de silêncio
na pureza nocturna e só das tuas mãos
onde os dias morrem e nascem igualmente

nas dunas e no mar serias vento
nas coisas e palavras uma casa
Era onde estavas apenas que eu te via
e não partias entretanto nem chegavas

Mário Cesariny Vasconcelos

Dois lados do mesmo adeus

Caem como folhas
Lágrimas no seu rosto
Suavemente descem
Deixam-lhe o desgosto

Entre dois suspiros
Sopro-lhe na face sem favor
Abre-se a janela
Tenta um disfarce

Aperta-me a mão
Ri por um instante
Deixo-me ficar
Deixo-me ficar

Nunca quis saber nunca quis acreditar
Que tu irias partir não podias cá ficar
nunca quis escutar muito menos quis ouvir
O teu silêncio que avisava a intenção de não voltar
Podes crer
Bem que me disseram para nunca me agarrar a uma pessoa a um lugar
Podes crer
Se um homem nunca chora para que servem estes olhos se não podem mais te ver
Queria ver queria saber
O que fazias tu que estás aqui a observar
Tás a ver tás a perceber
Pode ser que um dia a gente volte a se encontrar
Agora embora, agora sem demora
Deixa-me ficar aqui sozinho p’ra pensar
Embora agora que a minha alma chora
Como disse alguém
Vou-me perder para me encontrar

Esse choro triste
Desespero seu
P’ra tentar dizer
Nada se perdeu

Pede-me que fique mais
Por um segundo eterno
Como se quisesse ter
O meu beijo terno

Aperta-me a mão
Ri por um instante
Deixo-me ficar
Só por esse instante


Donna Maria

quinta-feira, outubro 06, 2005

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos (1928)

terça-feira, outubro 04, 2005

Tu

Uma pessoa.
Uma pessoa é um corpo.
Um corpo e uma fisionomia.
Uma pessoa, um corpo, uma identidade.
Uma pessoa é mais um Eu.
Eu pessoa e identidade.
Eu corpo e físico.

Mais uma pessoa junto a tantas outras.
Uma pessoa que junto a tantas outras
faz a diferença.
É mais uma pessoa,
mas com algo a mais.
Algo que a torna uma pessoa única.
Algo que a torna uma pessoa especial.

Na vida,
no decurso da vida,
a quantidade de pessoas que vemos,
com quem falamos e nos relacionamos.
Enfim, tantas pessoas passam,
tão poucas pessoas passam e ficam.
Tantas pessoas e por vezes, tão sós.

Uma pessoa.
Um Eu.
Um Eu a quem chamarei tu.
Tu uma pessoa.
Tu uma pessoa única e especial.
Tu, que por seres o que és,
serás uma pessoa que para sempre ficarás.

Tu, como qualquer outra pessoa.
Tu, tal como eu.
Tu e a tua máscara.
Tu pessoa vs Tu individuo.
Tu pessoa.
Tu que vives o teu dia-a-dia.
Acordas para mais um dia,
pouco motivado e descrente, mas …
mas, consegues manter uma esperança.
A esperança de encontrar a luz no fundo do túnel.
A esperança de um novo e diferente dia.
Acordaste ontem assim.
Acordaste hoje assim.
Mas amanhã não.
Amanhã queres mais.
Amanhã desejas mais.
Amanhã mereces mais.
A força, a vontade de mudança,
esvai-se com a mesma rapidez com que surgiu.
É assim que vives o teu dia-a-dia.
É como se a vida chegasse a um ponto,
em que entrasses num ciclo vicioso.
Sair dele é possível.
Acredita.
Por momentos, tu consegues.
Depois, falta-te a força e …
É como as ondas do mar.
Grandes e fortes e acabam pequenas e insignificantes.
Depois, dás por ti a viver um dia a seguir ao outro.
Talvez, isto seja normal.
Talvez, isto seja comum.
Talvez, tu pessoa sejas mais uma igual a tantas outras.

Tu individuo.
Tu produto da sociedade.
Tu não.
A tua máscara.
A máscara que utilizas para esconderes a pessoa.
A pessoa que és.
A máscara que utilizas para te protegeres das pessoas.
Das pessoas que não te deixam ser quem és.
Não é falsidade.
É apenas uma forma de protecção.
É legítimo, mas …
… já viste que, na maioria do tempo não és tu.
Tu pessoa.
Já viste que enquanto tiveres a máscara,
tiras tempo de vida à pessoa que és.
Não é pelos outros,
é por ti.

É assim que te vejo.
É assim que te conheço.
Conheço o que vejo.
Vejo e admiro.
Admiro aquilo que és e não o que podias ser.
Nesta vida, o importante é o que se é e o que se tem.
Querer ser mais.
Querer ter mais.
Isso é conversa de café.
É conversa para o pessoal dos copos.
Só te tens a ti.
Nesta vida, nada nos pertence.
Temos uma vida que nos é dada
e dão-nos a oportunidade de torná-la feliz.
Tudo depende de ti saber vivê-la.
Depende de ti seres feliz.
Feliz por aquilo que és, nunca esqueças.
Pois só o que somos nos pode fazer sentir bem.
Só o que somos nos dá gozo,
e também prazer.
É preciso reconhecer e aproveitar.

Percebi, há bem pouco tempo,
que morrer não é assim tão mau.
Nascer, crescer, morrer.
É o tempo que se tem para se ser feliz.
Se consegues, morres feliz.
Se não consegues, morres sem saber o que é ser feliz.

Tu pessoa que és muito mais do que aquilo que vejo.
Tu pessoa que és muito mais do que aquilo que conheço.
Tu tens de ser feliz.
Tu, por aquilo que vejo,
tu, por aquilo que conheço,
tens de levantar a cabeça e ser feliz.
Tens tudo para ser feliz.
Mentaliza-te disso que tudo o resto virá por arrastamento.
Acredita.
Acredita e vive.
(Dedicado a MS)

Cristina Cabral

Ser livre

Livre.
Ser livre.
Nunca serei livre.
Viverei sempre presa a qualquer coisa.
Ou a alguém.

Ser livre é utópico,
mas é bom.
Não sou livre.
Totalmente.
Sou como sou.
Livre o suficiente para ser feliz.
Não sou livre, mas preciso da liberdade para chegar à felicidade.
Liberdade para falar.
Liberdade para fazer o que gosto.

Livre.
Ser livre.
Posso nunca ser livre,
pois vivo sempre presa aos meus princípios,
mas tenho de ser livre para viver.

O que sou.
Como sou.
O que penso.
Como penso.
O que faço.
Como faço.
Posso ser livre,
mas é tudo condicionado.
Pelo que sou. Pela minha vida.
Pelas pessoas que fazem parte da minha vida.
Nunca serei livre.

Livre.
Ser livre.
Preciso ser livre.
Muito ou pouco.
Preciso acreditar que sou livre.
Preciso de sentir que sou livre.
Não sei bem porquê,
mas sempre que precisei de recomeçar,
foi a sensação de liberdade,
que me ajudou a rumar à felicidade.
Liberdade para ser feliz.

Livre.
Ser livre.
Tenho medo que me tirem essa liberdade,
que me imponham,
ou eu própria me deixe aprisionar.
Tenho medo porque a minha liberdade,
compensa o que não tenho,
compensa o que não consegui.
Sem ela, como é?
Não sou livre,
mas não sei viver sem liberdade.

Cristina Cabral

terça-feira, setembro 27, 2005

A mania da perseguição

Não olhar a meios para atingir o fim em vista nem sempre é a melhor alternativa, pois os custos em que se incorre superam, muitas vezes, os benefícios que se colhem. Por outro lado, há que ter em conta que os interesses em jogo (que são postos acima de tudo!) quase nunca são os da comunidade em geral mas sim os de grupos restritos. E fazem-no em nome do progresso!

O progresso! Essa faca de dois gumes que tanto pode contribuir para melhorar as condições de vida da humanidade, mas que se limita a “fabricar” autómatos que mais não fazem do que trabalhar para cumprir os objectivos ambiciosos impostos pela malta da “turma” que todos conhecemos, apenas pela humilde necessidade de sobreviver na nossa selva global.

Ah! E ainda há aqueles que ficam vermelhos de raiva quando alguém, por mérito próprio e sem ter de recorrer aos “amigos”, atinge o patamar que julgam só seu! Recomenda-se vivamente que revejam o conceito de humildade (talvez procurando num dicionário da língua portuguesa...) em vez de tentarem influenciar os poderosos com os mais elaborados argumentos, tentando desviar a sua atenção do reconhecimento (justo) dos esforços de outros. Pois é, pois é... mas quando é para receber os elogios pelo trabalho que os outros fizeram, lá estão eles na primeira fila (não vão os poderosos ter problemas com a visão...) com o seu fato domingueiro, prontos para fazerem a vénia que andaram a treinar em casa, em frente ao espelho, durante a última semana! Sim, aquela semana em que foram ao gabinete apenas algumas horas ao final do dia...

Mas não será isto que impedirá a continuação desta longa caminhada. Por mais que tentemos mudar o rumo das coisas acabaremos sempre por ter de nos defender para que as coisas não nos mudem a nós, sob pena de vermos a nossa visão crítica ser reduzida a zero pela mesquinhez e arrogância do inimigo social. Por mais remota que seja, a esperança continua sempre viva e para durar!

Krumlov

Cristal (Tinha algum vinho ainda)

Tinha algum vinho ainda o copo que atirei
Por cima do meu ombro e foi cair ao Tejo
De madrugada, amor, e havia esse lampejo
Do fogo em teu olhar a impor-me a sua lei

Da minha sombra à tua, em sombras pelo cais
Tinha um som ainda rouco o fado que eu cantava
Tão perto já de ti, não sei se respirava,
Nem se era para sempre ou para nunca mais

Meu amor, amor, por quanto me dizias
Estranho murmurar levado pelo vento
Por quanto era paixão e agora é desalento
O meu rosto estremece em águas tão sombrias

Por quanta embriaguês então nos consumiu
Fiquei como o cristal, mas creio que esqueceste,
Do copo em que eu bebi e tu também bebeste
Que foi cair ao rio e nele se partiu

Vasco Graça Moura

Pedaços de vida

“ Para se reinventar a si mesmo, é preciso desestabilizar cada aspecto, mudar e reestabilizar novamente”.

Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
Vive-se.
Um dia.
Uma semana.
Um mês.
Um ano.
Vive-se.
Vê-se.
Sente-se.
Muito ou Pouco.
Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
Cresce-se.
Um momento.
Uma oportunidade.
Um acontecimento.
Uma expectativa.
Vive-se.
Vê-se.
Sente-se.
Muito ou Pouco.
Bom ou Mau.
Bem ou Mal.

É a nossa vida.
Somos nós.
É o nosso tempo.
É o que nós temos.

Queremos muito.
Temos pouco.
Queremos o bom e o bem.
Conhecemos o mau e o mal.

Queremos o que não temos.
Queremos o que não sabemos se vamos ter.
Queremos apenas,
e tudo fazemos pelo que queremos.

Muito querer.
Pouca paciência.
É um querer quase ilimitado.
É uma impaciência com cada obstáculo surgido.

Somos limitados ou colocamos limites?
Tomamos as nossas decisões ou tudo já está previamente decidido?
Tudo acontece por acaso ou tem alguma razão de ser?
Somos o que fazemos ou fazemos o que somos?

Dúvidas e questões são colocadas.
Tudo é questionável.
Todos podem questionar.
Nem todos questionam.

Aceitar ou não aceitar.
Compreender ou não compreender.
Ter de aceitar e não compreender.
Não aceitar e ter de compreender.

Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
O tempo passa.
Vive-se.
Cresce-se.
Vive-se a vida.
Cresce-se com a vida.
Vive-se cada momento.
Vê-se cada oportunidade e cada acontecimento.
Sente-se cada expectativa.
Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
É um processo natural.
Depois uma situação …
Depois uma circunstância …
Depois tudo muda.
Nós mudamos.
Melhor ou Pior.
Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
Mudamos.
Perdemos a nossa essência.
Não nos reconhecemos.
Não nos compreendemos.

Somos nós,
fruto do que vivemos.
Somos nós,
perdidos no que vivemos.

O que foi a nossa vida?
O que é a nossa vida?
O que já fomos
e o que somos?

Onde está a nossa vida?
Onde estamos nós?
Onde andámos
e para onde vamos nós?

Ficar ou não ficar.
Continuar ou não continuar.
O não saber,
O querer apenas mudar.

Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
Muda-se.
Em cada dia.
Em cada semana.
Em cada mês.
Em cada ano.
Vive-se.
Muda-se.
Cresce-se.
Muito ou Pouco.
Melhor ou Pior.
Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
A vida passa.
E a qualquer momento, tudo acontece.
Acontece que a vida muda.
Nós mudamos.
Depois é reorganizar tudo.
Depois é reorientar a vida.
A nossa vida.
O nosso eu.
Procurar saber o que queremos para nós.
Procurar o que queremos para a nossa vida.
Enfim, o equilíbrio. (Seja lá isso onde for!)

Cristina Cabral

quarta-feira, setembro 14, 2005

A vida por um fio

Não somos nada. Somos tudo e não somos nada. Somos tudo para algumas pessoas e não somos nada para outras. Somos a mesma pessoa. Uma pessoa que por vezes tem tudo e sente nada. A mesma pessoa que outras vezes sente tudo e não tem nada.

Não somos nada. Somos o que nos deixarem ser. Somos até o fio se rebentar. Tudo está por um fio! Desengane-se aquele que pensa que tem tudo controlado.

Não somos nada. Não controlamos o rumo das coisas. Nem sempre nos conseguimos controlar a nós próprios. Somos fracos. Somos frágeis.

A qualquer momento o que nos mantém vivos pode parar. Algo tão simples como respirar, pode por e simplesmente não acontecer. Um gesto tão simples e rotineiro pode ser interrompido. Porquê?

Acontece? Não, não acontece por acaso.

Não somos nada, mas temos de dar o máximo. Em cada novo dia, novas exigências. Em cada novo dia, somos postos à prova. Uns mais, outros menos. Uns com mais apetência do que outros. Uns com maior adaptabilidade do que outros. A verdade é que não somos nada, mas tudo depende de nós. A nossa vida depende de nós. A vida, a forma como vemos a vida, a forma como levamos a vida. A forma como queremos ser e fazer os outros felizes.

Não somos nada, mas aquilo que somos depende de nós. Não estamos sozinhos, mas nisto só dependemos de nós. É preciso força, muita força. Temos de ser fortes. Temos de seguir o que queremos com persistência e coerência em tudo o que fazemos.

Não somos nada, mas o pouco que somos é o que temos. É com o que podemos contar. Não basta sermos fortes. De que serve a força se não conseguimos manter a nossa respiração. De que vale, se não nos conseguimos manter vivos.

Somos o que somos. Muito ou pouco. Tudo ou nada. Somos o que somos. Exigem de nós o máximo e não sendo suficiente, nós próprios continuamos a exigir mais e mais. É bom. É ter sempre objectivos, é ter sempre um rumo a seguir. Mas cuidado, os limites somos nós que impomos. Somos nós que temos de saber até onde podemos ir. Não podemos deixar que nos roubem o ar que respiramos, não podemos deixar que nos tirem a nossa vida. Não podemos colocar tudo o resto à frente da nossa vida. Daquilo que somos.

Somos fracos. Somos frágeis. Temos de aceitar isso. Não somos perfeitos e, se em alguns aspectos, podemos aperfeiçoar-nos, noutros nada podemos fazer a não ser conviver com esse facto. Não somos fracos, porque temos fraquezas. Somos fracos porque não sabemos lidar com as fraquezas.

Somos o que somos e não devemos ter vergonha do que somos. Somos o resultado de um amor. Somos o resultado de muito desejo. Ter vergonha do que somos é ter vergonha de todos os sentimentos dos quais nós surgimos.

Não somos nada. Somos apenas o resultado do que existe de mais bonito na vida. A vida. A mesma vida que não conseguimos viver. A vida que sem nos apercebermos, pode escapar-nos por entre os dedos. O que fazer?

Tudo está por um fio e a cada dia que passa esse fio está mais fino. O tempo não volta atrás. Resta o tempo que aí vem. Resta o amanhã. Está nas nossas mãos agarrar o fio e esperar que ele seja suficientemente forte para aguentar o peso da nossa vida. O peso por não sabermos viver e por não valorizarmos o facto de estarmos vivos e constantemente, colocarmos, essa mesma vida em perigo.

Cristina Cabral

O país de Alice

Prólogo

“E foi assim que decidi partir. Nada havia que me prendesse, alguns sonhos que tinha esvaíram-se, outros deixaram de fazer sentido e nenhuma outra ideia me ocorreu senão partir...”

O incógnito sempre exerceu em mim um certo fascínio e esta era uma oportunidade, ou talvez uma boa justificação, para sair e procurar algo que pudesse servir como alternativa ao vazio. Ninguém é obrigado a sentir o que não sente e outros há que dificilmente aceitam a realidade das coisas. Não estava só. Muitas vezes o preconceito é inimigo do idealismo e este não é mais do que a expressão exterior do ego de cada um. É como uma prisão e aí estão apenas(?) os “delinquentes”.

Decidi assumir a ruptura, ainda que parcialmente. Se todos são iguais, como se diz, porque clamam uns pelo direito à diferença? Porquê tantas desigualdades, tanta sede de poder e tantas outras injustiças? A revolta atinge o auge com o constatar permanente da passividade e da acomodação, conjugadas com o descontentamento geral perante a conjuntura. Já nem mesmo aqueles em quem depositava alguma esperança parecem conseguir entender-se!

E parti! E encontrei-me com uma realidade diferente que se ajustava melhor ao que eu sentia. Mas continuava a não estar só, apesar de ser o que mais desejava nesse momento. Há que saber escolher a melhor forma de abordar as situações delicadas e, cada vez menos, existe a sensibilidade necessária para lidar com isso. Nada mais resta do que reflectir, reflectir, reflectir... - o preconceito habitual!

O país de Alice

Estava sentado no sofá a beber uma chávena de chá quando tocou o telefone. Era aquela voz que ao longo de todo este tempo sempre fizera parte da minha vida e que agora voltava a ouvir.

- Estou?!
- João! Há quanto tempo!
- Não tenho estado por cá, vim só por poucos dias para resolver umas coisas...
- Nunca mais disseste nada...
- Tens razão. Mas sabes, precisava de sair daqui depois de tudo o que aconteceu.
- Compreendo, mas isso não é motivo para deixares de dar notícias.
- Preferi assim. Precisava estar isolado do nosso mundo maravilhoso por uns tempos.
- E tem resultado?
- Foi o melhor que me podia ter acontecido e, digo-te, quero continuar assim.
- Queres tomar um café, um dia destes?
- Talvez na sexta-feira, no café do costume às seis e meia da tarde. Que dizes?
- Por mim tudo bem, lá estarei.
- Então até sexta.
- Adeus.

Há mais de oito meses que deixara tudo para trás, a família, os amigos, o trabalho, e partira à procura de outro lugar para viver. Aos vinte e sete anos e depois de uma vida recheada de revolta, decidira partir em busca de uma vida diferente. Não queria passar o resto da vida atrás de uma secretária, em frente a um computador. - Sim, Sr. Doutor, com certeza! – Não, não era isto que iria fazer-me sentir realizado! E foi assim que decidi partir. Nada havia que me prendesse, alguns sonhos que tinha esvaíram-se, outros deixaram de fazer sentido e nenhuma outra ideia me ocorreu senão partir.

Era sexta-feira e o dia estava cinzento. A chuva ameaçava fazer uma visita, mas de resto tudo na mesma. O dia decorria com o ritmo habitual, casa-trabalho, trabalho-casa, a corrida para o autocarro, a mãe que bate na criança, o arrumador, os carros em cima do passeio, enfim, o stress de sempre. E o café também, apenas com uma diferença: os preços subiram. Ali estava a mesa vazia como que esperando a minha chegada. A mesa do costume, claro. Sentei-me e pedi um carioca de limão e uma torrada. Enquanto esperava passei os olhos pelo jornal apenas para confirmar que as notícias continuavam as mesmas: guerras, acidentes, assaltos, burlas, corrupção! Velhotes falavam de futebol, intercalando com desabafos sobre as reformas que não chegam nem para os medicamentos. Conformados. Como sempre, a “turma do colarinho branco” continuava em alta e os seus amigos também: os que vão aproveitando os ventos favoráveis quais crianças de colo aconchegadas pelos braços maternos.

- João! Continuas o mesmo!
- Parece-te, parece-te.
- Não me digas que não tinhas saudades...
- Sabes Tó, depois de ter visto o que vi sinto-me ainda mais revoltado com tudo isto.

O Tó sempre fora um dos poucos amigos que podia chamar-se assim. Era uma pessoa adaptada ao sistema, apesar de não concordar com ele, talvez porque não sentia a revolta como eu a sentia. Estudou piano no conservatório, fez várias digressões pelo estrangeiro, mas nunca lhe passou pela cabeça ficar por lá. Vivia sozinho com a sua música, a sua alma, como ele dizia.

-Temos que aprender a viver com o sistema, não podemos querer mudar aquilo que não tem mudança possível, temos que viver com isso!
-Por muitos pensarem como tu é que as coisas continuam na mesma.
-A união faz a força, eu sei, mas como falar de união se o individualismo é cada vez mais fomentado?
-Quem não estiver bem que se mude! Foi o que eu fiz. Ninguém é obrigado a suportar tudo isto. Sentimos a dor e ainda esboçamos um sorriso!
-...

Vocês podem ser levados a pensar que eu devo ter passado por grandes desilusões durante a minha vida ou que qualquer outra circunstância faz-me pensar assim, mas não é nada disso. Felizmente, durante todos estes anos e apesar de não ter tido uma vida isenta de problemas, sempre procurei aprender com tudo o que girava à minha volta e daí retirar conclusões. As minhas conclusões! Passei pelos episódios mais diversificados que possam imaginar, uns bons outros nem tanto, mas todas essas experiências contribuíram para moldar o mundo como eu o vejo hoje. Aos dezoito anos parti para o país de Alice, influenciado por alguém que o conhecia mas que não entrou em pormenores. Preferiu que fosse eu a ver com os meus próprios olhos. Depressa percebi que não era o país das maravilhas. Foi aí que conheci Frank, um cidadão do mundo. E muitos outros...

Era quase meia-noite. Voltávamos de um dos locais de diversão da cidade, ébrios, quando um grupo de jovens nos abordou. Pela agressividade demonstrada percebi que coisa boa não queriam e que também não era eu quem os incomodava. Vim a saber que a irmã de um deles era amiga de Frank e que o seu irmão exigia que este lhe pagasse se quisesse ser “amigo” dela, caso contrário teria de haver-se com ele. Exactamente o que aconteceu dias depois quando encontrei Frank com os olhos negros e não só... Noutra ocasião, com Luís e outros amigos, tínhamos estado a beber quando alguém deu conta que tinha desaparecido um casaco. Não conseguimos identificar nenhum suspeito por perto mas à saída percebemos quem eles eram: um grupo organizado que se dedicava a roubar turistas estrangeiros. Alguns de nós foram confundidos e problemas de maior foram evitados quando perceberam que não éramos quem eles pensavam.

O cheiro a primavera inundava o ar. Numa esplanada, um grupo de amigos bebia e brindava a tudo e a nada quando um homem se aproximou e a atenção recaiu sobre ele. Notava-se-lhe algum peso dos anos, passados a tentar sobreviver. Tinha bebido. Pediu-nos que o acompanhássemos num trago e que brindássemos em memória da sua filha: mais uma vítima inocente de um trágico acidente nuclear provocado por pura negligência! Ainda hoje recordo as suas feições como se estivesse à minha frente a tentar, em vão, conter as lágrimas enquanto bebia. Bebemos e tornámos a beber. E partilhámos com ele um pouco da sua dor. Mas a criança não voltou. Chamava-se Alice.

Beber, beber, beber sempre! Um conforto simulado para suprimir o sentimento de solidão e acalmar o frio que invade o corpo. Já perto do fim houve uma festa. Ocorreu-nos que queimar livros de autores (con)sagrados era interessante e não hesitámos. Corredores com fumo, o alarme e um polícia. Mas não havia incêndio! Sim, um polícia mais alcoolizado do que qualquer um de nós. Quem diria?! Só faltou brindarmos em conjunto para o episódio ser completo. Era este o país de Alice! Mas um dia houve alguém que abriu as janelas e os raios de sol começaram a entrar, aos poucos.

Passados que estavam os tempos conturbados, chegara a altura de tentar dar um rumo diferente à vida. Agora, mais a frio, acho que foi uma experiência proveitosa ter passado pelo país de Alice. Entristece-me apenas o facto de não ter sido sensibilizado para o que me esperava, pois quem conhecia a realidade omitiu-a, aparentemente sem motivo.

Krumlov

Canción para mi muerte

Hubo un tiempo en que fui hermoso
y fui libre de verdad
guardaba todos mis sueños
en castillos de cristal

Poco a poco fui creciendo
y mis fabulas de amor
se fueron desvaneciendo
como pompas de jabon

Te encontraré una mañana
dentro de mi habitación
y prepararas la cama para dos

Es larga la carretera
cuando uno mira atras
vas cruzando las fronteras
sin darte cuenta al pisar

Tomate del pasamanos
porque antes de llegar
se aferraron mil ancianos
pero se fueron igual

Te encontraré una mañana
dentro de mi habitación
y prepararas la cama para dos

Quisiera saber tu nombre
tu lugar, tu direccion
y si te han puesto telefono
tambien tu numeracion

Te suplico que me avises
si me vienes a buscar
no es porque te tenga miedo
solo me quiero arreglar

Te encontrare una mañana
dentro de mi habitacion
y prepararas la cama para dos

Charly Garcia

O sentido da vida

Se por um instante Deus se esquecesse de que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo o que penso, mas pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam.

Dormiria pouco, sonharia mais. Entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os outros param, acordaria quando os outros dormem. Ouviria quando os outros falam, e como desfrutaria de um bom gelado de chocolate.

Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto, não apenas o meu corpo, mas também a minha alma.

Meu Deus, se eu tivesse um coração, escreveria o meu ódio sobre o gelo e esperava que nascesse o sol. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas de um poema de Benedetti, e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à lua.

Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas...

Meu Deus, se eu tivesse um pouco de vida... Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas. Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo amor.

Aos homens provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar! A uma criança, dar-lhe-ia asas, mas teria que aprender a voar sozinha. Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento.

Tantas coisas aprendi com vocês, os homens... Aprendi que todo o mundo quer viver em cima da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta. Aprendi que quando um recém-nascido aperta com a sua pequena mão, pela primeira vez, o dedo do seu pai, o tem agarrado para sempre.

Aprendi que um homem só tem direito de olhar outro de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se. São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas não me hão-de servir realmente de muito, porque quando me guardarem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer...

atribuído a Gabriel Garcia Marquez

Não perdi nada...

E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente.

Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.

Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.

Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.


Miguel Sousa Tavares

terça-feira, setembro 13, 2005

Desejo

“Desejo primeiro que tu ames e que, amando, também sejas amado.

E que, se o não fores, sejas breve em esquecer e,
esquecendo, não guardes mágoa.

Desejo, pois que não seja assim, mas se for,
saibas ser sem desesperar.

Desejo também que tenhas amigos,
que mesmo maus e inconsequentes,
sejam corajosos e fiéis, e que em pelo menos um deles
tu possas confiar sem duvidar.

E porque a vida é assim, desejo ainda que tenhas inimigos;
nem muitos, nem poucos, mas na medida exacta para que,
algumas vezes, te interpeles
a respeito de tuas próprias certezas.
E que, entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
para que tu não te sintas demasiado seguro.

Desejo depois, que sejas útil, mas não insubstituível.
E que nos maus momentos, quando não restar mais nada,
essa utilidade seja suficiente para te manter de pé.

Desejo ainda que sejas tolerante;
não com os que erram pouco,
porque isso é fácil,
mas com os que erram muito e irremediavelmente.
E que, fazendo bom uso dessa tolerância,
tu sejas exemplo para os outros.

Desejo que tu, sendo jovem não amadureças depressa demais,
e que sendo maduro, não insistas em rejuvenescer e que,
sendo velho, não te dediques ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor
e é preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo por sinal que tu sejas triste,
não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubras que o riso diário é bom;
o riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que tu descubras, com o máximo de urgência,
acima e a despeito de tudo,
que existem oprimidos, injustiçados e infelizes,
e que estão à tua volta.

Desejo ainda que tu afagues um gato, alimentes um cuco e
ouças o galo erguer triunfante o seu canto matinal.
Porque assim, vais-te sentir bem por nada.

Desejo também que tu plantes uma semente,
por mais minúscula que seja... e acompanhes o seu crescimento,
para que saibas de quantas muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo que tenhas dinheiro,
porque é preciso ser prático.
E pelo menos uma vez por ano coloques um pouco dele
na tua frente e digas "Isto é meu",
só para que fique bem claro quem é o dono de quem.

Desejo também que nenhum dos teus afectos morra,
por ele e por ti, mas que, se morrer,
tu possas chorar sem te lamentares e sofrer sem te culpares.

Desejo por fim que, sendo tu um homem, tenhas uma boa mulher,
e que, sendo uma mulher, tenhas um bom homem.
E que se amem hoje, amanhã e no dia seguinte.
E quando estiverem exaustos e sorridentes
haja amor para recomeçar.”

In “ O DESEJO” de Vítor Hugo.