quarta-feira, setembro 14, 2005

O país de Alice

Prólogo

“E foi assim que decidi partir. Nada havia que me prendesse, alguns sonhos que tinha esvaíram-se, outros deixaram de fazer sentido e nenhuma outra ideia me ocorreu senão partir...”

O incógnito sempre exerceu em mim um certo fascínio e esta era uma oportunidade, ou talvez uma boa justificação, para sair e procurar algo que pudesse servir como alternativa ao vazio. Ninguém é obrigado a sentir o que não sente e outros há que dificilmente aceitam a realidade das coisas. Não estava só. Muitas vezes o preconceito é inimigo do idealismo e este não é mais do que a expressão exterior do ego de cada um. É como uma prisão e aí estão apenas(?) os “delinquentes”.

Decidi assumir a ruptura, ainda que parcialmente. Se todos são iguais, como se diz, porque clamam uns pelo direito à diferença? Porquê tantas desigualdades, tanta sede de poder e tantas outras injustiças? A revolta atinge o auge com o constatar permanente da passividade e da acomodação, conjugadas com o descontentamento geral perante a conjuntura. Já nem mesmo aqueles em quem depositava alguma esperança parecem conseguir entender-se!

E parti! E encontrei-me com uma realidade diferente que se ajustava melhor ao que eu sentia. Mas continuava a não estar só, apesar de ser o que mais desejava nesse momento. Há que saber escolher a melhor forma de abordar as situações delicadas e, cada vez menos, existe a sensibilidade necessária para lidar com isso. Nada mais resta do que reflectir, reflectir, reflectir... - o preconceito habitual!

O país de Alice

Estava sentado no sofá a beber uma chávena de chá quando tocou o telefone. Era aquela voz que ao longo de todo este tempo sempre fizera parte da minha vida e que agora voltava a ouvir.

- Estou?!
- João! Há quanto tempo!
- Não tenho estado por cá, vim só por poucos dias para resolver umas coisas...
- Nunca mais disseste nada...
- Tens razão. Mas sabes, precisava de sair daqui depois de tudo o que aconteceu.
- Compreendo, mas isso não é motivo para deixares de dar notícias.
- Preferi assim. Precisava estar isolado do nosso mundo maravilhoso por uns tempos.
- E tem resultado?
- Foi o melhor que me podia ter acontecido e, digo-te, quero continuar assim.
- Queres tomar um café, um dia destes?
- Talvez na sexta-feira, no café do costume às seis e meia da tarde. Que dizes?
- Por mim tudo bem, lá estarei.
- Então até sexta.
- Adeus.

Há mais de oito meses que deixara tudo para trás, a família, os amigos, o trabalho, e partira à procura de outro lugar para viver. Aos vinte e sete anos e depois de uma vida recheada de revolta, decidira partir em busca de uma vida diferente. Não queria passar o resto da vida atrás de uma secretária, em frente a um computador. - Sim, Sr. Doutor, com certeza! – Não, não era isto que iria fazer-me sentir realizado! E foi assim que decidi partir. Nada havia que me prendesse, alguns sonhos que tinha esvaíram-se, outros deixaram de fazer sentido e nenhuma outra ideia me ocorreu senão partir.

Era sexta-feira e o dia estava cinzento. A chuva ameaçava fazer uma visita, mas de resto tudo na mesma. O dia decorria com o ritmo habitual, casa-trabalho, trabalho-casa, a corrida para o autocarro, a mãe que bate na criança, o arrumador, os carros em cima do passeio, enfim, o stress de sempre. E o café também, apenas com uma diferença: os preços subiram. Ali estava a mesa vazia como que esperando a minha chegada. A mesa do costume, claro. Sentei-me e pedi um carioca de limão e uma torrada. Enquanto esperava passei os olhos pelo jornal apenas para confirmar que as notícias continuavam as mesmas: guerras, acidentes, assaltos, burlas, corrupção! Velhotes falavam de futebol, intercalando com desabafos sobre as reformas que não chegam nem para os medicamentos. Conformados. Como sempre, a “turma do colarinho branco” continuava em alta e os seus amigos também: os que vão aproveitando os ventos favoráveis quais crianças de colo aconchegadas pelos braços maternos.

- João! Continuas o mesmo!
- Parece-te, parece-te.
- Não me digas que não tinhas saudades...
- Sabes Tó, depois de ter visto o que vi sinto-me ainda mais revoltado com tudo isto.

O Tó sempre fora um dos poucos amigos que podia chamar-se assim. Era uma pessoa adaptada ao sistema, apesar de não concordar com ele, talvez porque não sentia a revolta como eu a sentia. Estudou piano no conservatório, fez várias digressões pelo estrangeiro, mas nunca lhe passou pela cabeça ficar por lá. Vivia sozinho com a sua música, a sua alma, como ele dizia.

-Temos que aprender a viver com o sistema, não podemos querer mudar aquilo que não tem mudança possível, temos que viver com isso!
-Por muitos pensarem como tu é que as coisas continuam na mesma.
-A união faz a força, eu sei, mas como falar de união se o individualismo é cada vez mais fomentado?
-Quem não estiver bem que se mude! Foi o que eu fiz. Ninguém é obrigado a suportar tudo isto. Sentimos a dor e ainda esboçamos um sorriso!
-...

Vocês podem ser levados a pensar que eu devo ter passado por grandes desilusões durante a minha vida ou que qualquer outra circunstância faz-me pensar assim, mas não é nada disso. Felizmente, durante todos estes anos e apesar de não ter tido uma vida isenta de problemas, sempre procurei aprender com tudo o que girava à minha volta e daí retirar conclusões. As minhas conclusões! Passei pelos episódios mais diversificados que possam imaginar, uns bons outros nem tanto, mas todas essas experiências contribuíram para moldar o mundo como eu o vejo hoje. Aos dezoito anos parti para o país de Alice, influenciado por alguém que o conhecia mas que não entrou em pormenores. Preferiu que fosse eu a ver com os meus próprios olhos. Depressa percebi que não era o país das maravilhas. Foi aí que conheci Frank, um cidadão do mundo. E muitos outros...

Era quase meia-noite. Voltávamos de um dos locais de diversão da cidade, ébrios, quando um grupo de jovens nos abordou. Pela agressividade demonstrada percebi que coisa boa não queriam e que também não era eu quem os incomodava. Vim a saber que a irmã de um deles era amiga de Frank e que o seu irmão exigia que este lhe pagasse se quisesse ser “amigo” dela, caso contrário teria de haver-se com ele. Exactamente o que aconteceu dias depois quando encontrei Frank com os olhos negros e não só... Noutra ocasião, com Luís e outros amigos, tínhamos estado a beber quando alguém deu conta que tinha desaparecido um casaco. Não conseguimos identificar nenhum suspeito por perto mas à saída percebemos quem eles eram: um grupo organizado que se dedicava a roubar turistas estrangeiros. Alguns de nós foram confundidos e problemas de maior foram evitados quando perceberam que não éramos quem eles pensavam.

O cheiro a primavera inundava o ar. Numa esplanada, um grupo de amigos bebia e brindava a tudo e a nada quando um homem se aproximou e a atenção recaiu sobre ele. Notava-se-lhe algum peso dos anos, passados a tentar sobreviver. Tinha bebido. Pediu-nos que o acompanhássemos num trago e que brindássemos em memória da sua filha: mais uma vítima inocente de um trágico acidente nuclear provocado por pura negligência! Ainda hoje recordo as suas feições como se estivesse à minha frente a tentar, em vão, conter as lágrimas enquanto bebia. Bebemos e tornámos a beber. E partilhámos com ele um pouco da sua dor. Mas a criança não voltou. Chamava-se Alice.

Beber, beber, beber sempre! Um conforto simulado para suprimir o sentimento de solidão e acalmar o frio que invade o corpo. Já perto do fim houve uma festa. Ocorreu-nos que queimar livros de autores (con)sagrados era interessante e não hesitámos. Corredores com fumo, o alarme e um polícia. Mas não havia incêndio! Sim, um polícia mais alcoolizado do que qualquer um de nós. Quem diria?! Só faltou brindarmos em conjunto para o episódio ser completo. Era este o país de Alice! Mas um dia houve alguém que abriu as janelas e os raios de sol começaram a entrar, aos poucos.

Passados que estavam os tempos conturbados, chegara a altura de tentar dar um rumo diferente à vida. Agora, mais a frio, acho que foi uma experiência proveitosa ter passado pelo país de Alice. Entristece-me apenas o facto de não ter sido sensibilizado para o que me esperava, pois quem conhecia a realidade omitiu-a, aparentemente sem motivo.

Krumlov