quarta-feira, outubro 12, 2005

Respirar

Onde eu te via era onde estavas
e não partias entretanto nem chegavas

Com os teus olhos pelo vento leste
longamente ondulados de silêncio
na pureza nocturna e só das tuas mãos
onde os dias morrem e nascem igualmente

nas dunas e no mar serias vento
nas coisas e palavras uma casa
Era onde estavas apenas que eu te via
e não partias entretanto nem chegavas

Mário Cesariny Vasconcelos

Dois lados do mesmo adeus

Caem como folhas
Lágrimas no seu rosto
Suavemente descem
Deixam-lhe o desgosto

Entre dois suspiros
Sopro-lhe na face sem favor
Abre-se a janela
Tenta um disfarce

Aperta-me a mão
Ri por um instante
Deixo-me ficar
Deixo-me ficar

Nunca quis saber nunca quis acreditar
Que tu irias partir não podias cá ficar
nunca quis escutar muito menos quis ouvir
O teu silêncio que avisava a intenção de não voltar
Podes crer
Bem que me disseram para nunca me agarrar a uma pessoa a um lugar
Podes crer
Se um homem nunca chora para que servem estes olhos se não podem mais te ver
Queria ver queria saber
O que fazias tu que estás aqui a observar
Tás a ver tás a perceber
Pode ser que um dia a gente volte a se encontrar
Agora embora, agora sem demora
Deixa-me ficar aqui sozinho p’ra pensar
Embora agora que a minha alma chora
Como disse alguém
Vou-me perder para me encontrar

Esse choro triste
Desespero seu
P’ra tentar dizer
Nada se perdeu

Pede-me que fique mais
Por um segundo eterno
Como se quisesse ter
O meu beijo terno

Aperta-me a mão
Ri por um instante
Deixo-me ficar
Só por esse instante


Donna Maria

quinta-feira, outubro 06, 2005

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos (1928)

terça-feira, outubro 04, 2005

Tu

Uma pessoa.
Uma pessoa é um corpo.
Um corpo e uma fisionomia.
Uma pessoa, um corpo, uma identidade.
Uma pessoa é mais um Eu.
Eu pessoa e identidade.
Eu corpo e físico.

Mais uma pessoa junto a tantas outras.
Uma pessoa que junto a tantas outras
faz a diferença.
É mais uma pessoa,
mas com algo a mais.
Algo que a torna uma pessoa única.
Algo que a torna uma pessoa especial.

Na vida,
no decurso da vida,
a quantidade de pessoas que vemos,
com quem falamos e nos relacionamos.
Enfim, tantas pessoas passam,
tão poucas pessoas passam e ficam.
Tantas pessoas e por vezes, tão sós.

Uma pessoa.
Um Eu.
Um Eu a quem chamarei tu.
Tu uma pessoa.
Tu uma pessoa única e especial.
Tu, que por seres o que és,
serás uma pessoa que para sempre ficarás.

Tu, como qualquer outra pessoa.
Tu, tal como eu.
Tu e a tua máscara.
Tu pessoa vs Tu individuo.
Tu pessoa.
Tu que vives o teu dia-a-dia.
Acordas para mais um dia,
pouco motivado e descrente, mas …
mas, consegues manter uma esperança.
A esperança de encontrar a luz no fundo do túnel.
A esperança de um novo e diferente dia.
Acordaste ontem assim.
Acordaste hoje assim.
Mas amanhã não.
Amanhã queres mais.
Amanhã desejas mais.
Amanhã mereces mais.
A força, a vontade de mudança,
esvai-se com a mesma rapidez com que surgiu.
É assim que vives o teu dia-a-dia.
É como se a vida chegasse a um ponto,
em que entrasses num ciclo vicioso.
Sair dele é possível.
Acredita.
Por momentos, tu consegues.
Depois, falta-te a força e …
É como as ondas do mar.
Grandes e fortes e acabam pequenas e insignificantes.
Depois, dás por ti a viver um dia a seguir ao outro.
Talvez, isto seja normal.
Talvez, isto seja comum.
Talvez, tu pessoa sejas mais uma igual a tantas outras.

Tu individuo.
Tu produto da sociedade.
Tu não.
A tua máscara.
A máscara que utilizas para esconderes a pessoa.
A pessoa que és.
A máscara que utilizas para te protegeres das pessoas.
Das pessoas que não te deixam ser quem és.
Não é falsidade.
É apenas uma forma de protecção.
É legítimo, mas …
… já viste que, na maioria do tempo não és tu.
Tu pessoa.
Já viste que enquanto tiveres a máscara,
tiras tempo de vida à pessoa que és.
Não é pelos outros,
é por ti.

É assim que te vejo.
É assim que te conheço.
Conheço o que vejo.
Vejo e admiro.
Admiro aquilo que és e não o que podias ser.
Nesta vida, o importante é o que se é e o que se tem.
Querer ser mais.
Querer ter mais.
Isso é conversa de café.
É conversa para o pessoal dos copos.
Só te tens a ti.
Nesta vida, nada nos pertence.
Temos uma vida que nos é dada
e dão-nos a oportunidade de torná-la feliz.
Tudo depende de ti saber vivê-la.
Depende de ti seres feliz.
Feliz por aquilo que és, nunca esqueças.
Pois só o que somos nos pode fazer sentir bem.
Só o que somos nos dá gozo,
e também prazer.
É preciso reconhecer e aproveitar.

Percebi, há bem pouco tempo,
que morrer não é assim tão mau.
Nascer, crescer, morrer.
É o tempo que se tem para se ser feliz.
Se consegues, morres feliz.
Se não consegues, morres sem saber o que é ser feliz.

Tu pessoa que és muito mais do que aquilo que vejo.
Tu pessoa que és muito mais do que aquilo que conheço.
Tu tens de ser feliz.
Tu, por aquilo que vejo,
tu, por aquilo que conheço,
tens de levantar a cabeça e ser feliz.
Tens tudo para ser feliz.
Mentaliza-te disso que tudo o resto virá por arrastamento.
Acredita.
Acredita e vive.
(Dedicado a MS)

Cristina Cabral

Ser livre

Livre.
Ser livre.
Nunca serei livre.
Viverei sempre presa a qualquer coisa.
Ou a alguém.

Ser livre é utópico,
mas é bom.
Não sou livre.
Totalmente.
Sou como sou.
Livre o suficiente para ser feliz.
Não sou livre, mas preciso da liberdade para chegar à felicidade.
Liberdade para falar.
Liberdade para fazer o que gosto.

Livre.
Ser livre.
Posso nunca ser livre,
pois vivo sempre presa aos meus princípios,
mas tenho de ser livre para viver.

O que sou.
Como sou.
O que penso.
Como penso.
O que faço.
Como faço.
Posso ser livre,
mas é tudo condicionado.
Pelo que sou. Pela minha vida.
Pelas pessoas que fazem parte da minha vida.
Nunca serei livre.

Livre.
Ser livre.
Preciso ser livre.
Muito ou pouco.
Preciso acreditar que sou livre.
Preciso de sentir que sou livre.
Não sei bem porquê,
mas sempre que precisei de recomeçar,
foi a sensação de liberdade,
que me ajudou a rumar à felicidade.
Liberdade para ser feliz.

Livre.
Ser livre.
Tenho medo que me tirem essa liberdade,
que me imponham,
ou eu própria me deixe aprisionar.
Tenho medo porque a minha liberdade,
compensa o que não tenho,
compensa o que não consegui.
Sem ela, como é?
Não sou livre,
mas não sei viver sem liberdade.

Cristina Cabral