terça-feira, setembro 27, 2005

A mania da perseguição

Não olhar a meios para atingir o fim em vista nem sempre é a melhor alternativa, pois os custos em que se incorre superam, muitas vezes, os benefícios que se colhem. Por outro lado, há que ter em conta que os interesses em jogo (que são postos acima de tudo!) quase nunca são os da comunidade em geral mas sim os de grupos restritos. E fazem-no em nome do progresso!

O progresso! Essa faca de dois gumes que tanto pode contribuir para melhorar as condições de vida da humanidade, mas que se limita a “fabricar” autómatos que mais não fazem do que trabalhar para cumprir os objectivos ambiciosos impostos pela malta da “turma” que todos conhecemos, apenas pela humilde necessidade de sobreviver na nossa selva global.

Ah! E ainda há aqueles que ficam vermelhos de raiva quando alguém, por mérito próprio e sem ter de recorrer aos “amigos”, atinge o patamar que julgam só seu! Recomenda-se vivamente que revejam o conceito de humildade (talvez procurando num dicionário da língua portuguesa...) em vez de tentarem influenciar os poderosos com os mais elaborados argumentos, tentando desviar a sua atenção do reconhecimento (justo) dos esforços de outros. Pois é, pois é... mas quando é para receber os elogios pelo trabalho que os outros fizeram, lá estão eles na primeira fila (não vão os poderosos ter problemas com a visão...) com o seu fato domingueiro, prontos para fazerem a vénia que andaram a treinar em casa, em frente ao espelho, durante a última semana! Sim, aquela semana em que foram ao gabinete apenas algumas horas ao final do dia...

Mas não será isto que impedirá a continuação desta longa caminhada. Por mais que tentemos mudar o rumo das coisas acabaremos sempre por ter de nos defender para que as coisas não nos mudem a nós, sob pena de vermos a nossa visão crítica ser reduzida a zero pela mesquinhez e arrogância do inimigo social. Por mais remota que seja, a esperança continua sempre viva e para durar!

Krumlov

Cristal (Tinha algum vinho ainda)

Tinha algum vinho ainda o copo que atirei
Por cima do meu ombro e foi cair ao Tejo
De madrugada, amor, e havia esse lampejo
Do fogo em teu olhar a impor-me a sua lei

Da minha sombra à tua, em sombras pelo cais
Tinha um som ainda rouco o fado que eu cantava
Tão perto já de ti, não sei se respirava,
Nem se era para sempre ou para nunca mais

Meu amor, amor, por quanto me dizias
Estranho murmurar levado pelo vento
Por quanto era paixão e agora é desalento
O meu rosto estremece em águas tão sombrias

Por quanta embriaguês então nos consumiu
Fiquei como o cristal, mas creio que esqueceste,
Do copo em que eu bebi e tu também bebeste
Que foi cair ao rio e nele se partiu

Vasco Graça Moura

Pedaços de vida

“ Para se reinventar a si mesmo, é preciso desestabilizar cada aspecto, mudar e reestabilizar novamente”.

Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
Vive-se.
Um dia.
Uma semana.
Um mês.
Um ano.
Vive-se.
Vê-se.
Sente-se.
Muito ou Pouco.
Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
Cresce-se.
Um momento.
Uma oportunidade.
Um acontecimento.
Uma expectativa.
Vive-se.
Vê-se.
Sente-se.
Muito ou Pouco.
Bom ou Mau.
Bem ou Mal.

É a nossa vida.
Somos nós.
É o nosso tempo.
É o que nós temos.

Queremos muito.
Temos pouco.
Queremos o bom e o bem.
Conhecemos o mau e o mal.

Queremos o que não temos.
Queremos o que não sabemos se vamos ter.
Queremos apenas,
e tudo fazemos pelo que queremos.

Muito querer.
Pouca paciência.
É um querer quase ilimitado.
É uma impaciência com cada obstáculo surgido.

Somos limitados ou colocamos limites?
Tomamos as nossas decisões ou tudo já está previamente decidido?
Tudo acontece por acaso ou tem alguma razão de ser?
Somos o que fazemos ou fazemos o que somos?

Dúvidas e questões são colocadas.
Tudo é questionável.
Todos podem questionar.
Nem todos questionam.

Aceitar ou não aceitar.
Compreender ou não compreender.
Ter de aceitar e não compreender.
Não aceitar e ter de compreender.

Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
O tempo passa.
Vive-se.
Cresce-se.
Vive-se a vida.
Cresce-se com a vida.
Vive-se cada momento.
Vê-se cada oportunidade e cada acontecimento.
Sente-se cada expectativa.
Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
É um processo natural.
Depois uma situação …
Depois uma circunstância …
Depois tudo muda.
Nós mudamos.
Melhor ou Pior.
Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
Mudamos.
Perdemos a nossa essência.
Não nos reconhecemos.
Não nos compreendemos.

Somos nós,
fruto do que vivemos.
Somos nós,
perdidos no que vivemos.

O que foi a nossa vida?
O que é a nossa vida?
O que já fomos
e o que somos?

Onde está a nossa vida?
Onde estamos nós?
Onde andámos
e para onde vamos nós?

Ficar ou não ficar.
Continuar ou não continuar.
O não saber,
O querer apenas mudar.

Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
Muda-se.
Em cada dia.
Em cada semana.
Em cada mês.
Em cada ano.
Vive-se.
Muda-se.
Cresce-se.
Muito ou Pouco.
Melhor ou Pior.
Bom ou Mau.
Bem ou Mal.
A vida passa.
E a qualquer momento, tudo acontece.
Acontece que a vida muda.
Nós mudamos.
Depois é reorganizar tudo.
Depois é reorientar a vida.
A nossa vida.
O nosso eu.
Procurar saber o que queremos para nós.
Procurar o que queremos para a nossa vida.
Enfim, o equilíbrio. (Seja lá isso onde for!)

Cristina Cabral

quarta-feira, setembro 14, 2005

A vida por um fio

Não somos nada. Somos tudo e não somos nada. Somos tudo para algumas pessoas e não somos nada para outras. Somos a mesma pessoa. Uma pessoa que por vezes tem tudo e sente nada. A mesma pessoa que outras vezes sente tudo e não tem nada.

Não somos nada. Somos o que nos deixarem ser. Somos até o fio se rebentar. Tudo está por um fio! Desengane-se aquele que pensa que tem tudo controlado.

Não somos nada. Não controlamos o rumo das coisas. Nem sempre nos conseguimos controlar a nós próprios. Somos fracos. Somos frágeis.

A qualquer momento o que nos mantém vivos pode parar. Algo tão simples como respirar, pode por e simplesmente não acontecer. Um gesto tão simples e rotineiro pode ser interrompido. Porquê?

Acontece? Não, não acontece por acaso.

Não somos nada, mas temos de dar o máximo. Em cada novo dia, novas exigências. Em cada novo dia, somos postos à prova. Uns mais, outros menos. Uns com mais apetência do que outros. Uns com maior adaptabilidade do que outros. A verdade é que não somos nada, mas tudo depende de nós. A nossa vida depende de nós. A vida, a forma como vemos a vida, a forma como levamos a vida. A forma como queremos ser e fazer os outros felizes.

Não somos nada, mas aquilo que somos depende de nós. Não estamos sozinhos, mas nisto só dependemos de nós. É preciso força, muita força. Temos de ser fortes. Temos de seguir o que queremos com persistência e coerência em tudo o que fazemos.

Não somos nada, mas o pouco que somos é o que temos. É com o que podemos contar. Não basta sermos fortes. De que serve a força se não conseguimos manter a nossa respiração. De que vale, se não nos conseguimos manter vivos.

Somos o que somos. Muito ou pouco. Tudo ou nada. Somos o que somos. Exigem de nós o máximo e não sendo suficiente, nós próprios continuamos a exigir mais e mais. É bom. É ter sempre objectivos, é ter sempre um rumo a seguir. Mas cuidado, os limites somos nós que impomos. Somos nós que temos de saber até onde podemos ir. Não podemos deixar que nos roubem o ar que respiramos, não podemos deixar que nos tirem a nossa vida. Não podemos colocar tudo o resto à frente da nossa vida. Daquilo que somos.

Somos fracos. Somos frágeis. Temos de aceitar isso. Não somos perfeitos e, se em alguns aspectos, podemos aperfeiçoar-nos, noutros nada podemos fazer a não ser conviver com esse facto. Não somos fracos, porque temos fraquezas. Somos fracos porque não sabemos lidar com as fraquezas.

Somos o que somos e não devemos ter vergonha do que somos. Somos o resultado de um amor. Somos o resultado de muito desejo. Ter vergonha do que somos é ter vergonha de todos os sentimentos dos quais nós surgimos.

Não somos nada. Somos apenas o resultado do que existe de mais bonito na vida. A vida. A mesma vida que não conseguimos viver. A vida que sem nos apercebermos, pode escapar-nos por entre os dedos. O que fazer?

Tudo está por um fio e a cada dia que passa esse fio está mais fino. O tempo não volta atrás. Resta o tempo que aí vem. Resta o amanhã. Está nas nossas mãos agarrar o fio e esperar que ele seja suficientemente forte para aguentar o peso da nossa vida. O peso por não sabermos viver e por não valorizarmos o facto de estarmos vivos e constantemente, colocarmos, essa mesma vida em perigo.

Cristina Cabral

O país de Alice

Prólogo

“E foi assim que decidi partir. Nada havia que me prendesse, alguns sonhos que tinha esvaíram-se, outros deixaram de fazer sentido e nenhuma outra ideia me ocorreu senão partir...”

O incógnito sempre exerceu em mim um certo fascínio e esta era uma oportunidade, ou talvez uma boa justificação, para sair e procurar algo que pudesse servir como alternativa ao vazio. Ninguém é obrigado a sentir o que não sente e outros há que dificilmente aceitam a realidade das coisas. Não estava só. Muitas vezes o preconceito é inimigo do idealismo e este não é mais do que a expressão exterior do ego de cada um. É como uma prisão e aí estão apenas(?) os “delinquentes”.

Decidi assumir a ruptura, ainda que parcialmente. Se todos são iguais, como se diz, porque clamam uns pelo direito à diferença? Porquê tantas desigualdades, tanta sede de poder e tantas outras injustiças? A revolta atinge o auge com o constatar permanente da passividade e da acomodação, conjugadas com o descontentamento geral perante a conjuntura. Já nem mesmo aqueles em quem depositava alguma esperança parecem conseguir entender-se!

E parti! E encontrei-me com uma realidade diferente que se ajustava melhor ao que eu sentia. Mas continuava a não estar só, apesar de ser o que mais desejava nesse momento. Há que saber escolher a melhor forma de abordar as situações delicadas e, cada vez menos, existe a sensibilidade necessária para lidar com isso. Nada mais resta do que reflectir, reflectir, reflectir... - o preconceito habitual!

O país de Alice

Estava sentado no sofá a beber uma chávena de chá quando tocou o telefone. Era aquela voz que ao longo de todo este tempo sempre fizera parte da minha vida e que agora voltava a ouvir.

- Estou?!
- João! Há quanto tempo!
- Não tenho estado por cá, vim só por poucos dias para resolver umas coisas...
- Nunca mais disseste nada...
- Tens razão. Mas sabes, precisava de sair daqui depois de tudo o que aconteceu.
- Compreendo, mas isso não é motivo para deixares de dar notícias.
- Preferi assim. Precisava estar isolado do nosso mundo maravilhoso por uns tempos.
- E tem resultado?
- Foi o melhor que me podia ter acontecido e, digo-te, quero continuar assim.
- Queres tomar um café, um dia destes?
- Talvez na sexta-feira, no café do costume às seis e meia da tarde. Que dizes?
- Por mim tudo bem, lá estarei.
- Então até sexta.
- Adeus.

Há mais de oito meses que deixara tudo para trás, a família, os amigos, o trabalho, e partira à procura de outro lugar para viver. Aos vinte e sete anos e depois de uma vida recheada de revolta, decidira partir em busca de uma vida diferente. Não queria passar o resto da vida atrás de uma secretária, em frente a um computador. - Sim, Sr. Doutor, com certeza! – Não, não era isto que iria fazer-me sentir realizado! E foi assim que decidi partir. Nada havia que me prendesse, alguns sonhos que tinha esvaíram-se, outros deixaram de fazer sentido e nenhuma outra ideia me ocorreu senão partir.

Era sexta-feira e o dia estava cinzento. A chuva ameaçava fazer uma visita, mas de resto tudo na mesma. O dia decorria com o ritmo habitual, casa-trabalho, trabalho-casa, a corrida para o autocarro, a mãe que bate na criança, o arrumador, os carros em cima do passeio, enfim, o stress de sempre. E o café também, apenas com uma diferença: os preços subiram. Ali estava a mesa vazia como que esperando a minha chegada. A mesa do costume, claro. Sentei-me e pedi um carioca de limão e uma torrada. Enquanto esperava passei os olhos pelo jornal apenas para confirmar que as notícias continuavam as mesmas: guerras, acidentes, assaltos, burlas, corrupção! Velhotes falavam de futebol, intercalando com desabafos sobre as reformas que não chegam nem para os medicamentos. Conformados. Como sempre, a “turma do colarinho branco” continuava em alta e os seus amigos também: os que vão aproveitando os ventos favoráveis quais crianças de colo aconchegadas pelos braços maternos.

- João! Continuas o mesmo!
- Parece-te, parece-te.
- Não me digas que não tinhas saudades...
- Sabes Tó, depois de ter visto o que vi sinto-me ainda mais revoltado com tudo isto.

O Tó sempre fora um dos poucos amigos que podia chamar-se assim. Era uma pessoa adaptada ao sistema, apesar de não concordar com ele, talvez porque não sentia a revolta como eu a sentia. Estudou piano no conservatório, fez várias digressões pelo estrangeiro, mas nunca lhe passou pela cabeça ficar por lá. Vivia sozinho com a sua música, a sua alma, como ele dizia.

-Temos que aprender a viver com o sistema, não podemos querer mudar aquilo que não tem mudança possível, temos que viver com isso!
-Por muitos pensarem como tu é que as coisas continuam na mesma.
-A união faz a força, eu sei, mas como falar de união se o individualismo é cada vez mais fomentado?
-Quem não estiver bem que se mude! Foi o que eu fiz. Ninguém é obrigado a suportar tudo isto. Sentimos a dor e ainda esboçamos um sorriso!
-...

Vocês podem ser levados a pensar que eu devo ter passado por grandes desilusões durante a minha vida ou que qualquer outra circunstância faz-me pensar assim, mas não é nada disso. Felizmente, durante todos estes anos e apesar de não ter tido uma vida isenta de problemas, sempre procurei aprender com tudo o que girava à minha volta e daí retirar conclusões. As minhas conclusões! Passei pelos episódios mais diversificados que possam imaginar, uns bons outros nem tanto, mas todas essas experiências contribuíram para moldar o mundo como eu o vejo hoje. Aos dezoito anos parti para o país de Alice, influenciado por alguém que o conhecia mas que não entrou em pormenores. Preferiu que fosse eu a ver com os meus próprios olhos. Depressa percebi que não era o país das maravilhas. Foi aí que conheci Frank, um cidadão do mundo. E muitos outros...

Era quase meia-noite. Voltávamos de um dos locais de diversão da cidade, ébrios, quando um grupo de jovens nos abordou. Pela agressividade demonstrada percebi que coisa boa não queriam e que também não era eu quem os incomodava. Vim a saber que a irmã de um deles era amiga de Frank e que o seu irmão exigia que este lhe pagasse se quisesse ser “amigo” dela, caso contrário teria de haver-se com ele. Exactamente o que aconteceu dias depois quando encontrei Frank com os olhos negros e não só... Noutra ocasião, com Luís e outros amigos, tínhamos estado a beber quando alguém deu conta que tinha desaparecido um casaco. Não conseguimos identificar nenhum suspeito por perto mas à saída percebemos quem eles eram: um grupo organizado que se dedicava a roubar turistas estrangeiros. Alguns de nós foram confundidos e problemas de maior foram evitados quando perceberam que não éramos quem eles pensavam.

O cheiro a primavera inundava o ar. Numa esplanada, um grupo de amigos bebia e brindava a tudo e a nada quando um homem se aproximou e a atenção recaiu sobre ele. Notava-se-lhe algum peso dos anos, passados a tentar sobreviver. Tinha bebido. Pediu-nos que o acompanhássemos num trago e que brindássemos em memória da sua filha: mais uma vítima inocente de um trágico acidente nuclear provocado por pura negligência! Ainda hoje recordo as suas feições como se estivesse à minha frente a tentar, em vão, conter as lágrimas enquanto bebia. Bebemos e tornámos a beber. E partilhámos com ele um pouco da sua dor. Mas a criança não voltou. Chamava-se Alice.

Beber, beber, beber sempre! Um conforto simulado para suprimir o sentimento de solidão e acalmar o frio que invade o corpo. Já perto do fim houve uma festa. Ocorreu-nos que queimar livros de autores (con)sagrados era interessante e não hesitámos. Corredores com fumo, o alarme e um polícia. Mas não havia incêndio! Sim, um polícia mais alcoolizado do que qualquer um de nós. Quem diria?! Só faltou brindarmos em conjunto para o episódio ser completo. Era este o país de Alice! Mas um dia houve alguém que abriu as janelas e os raios de sol começaram a entrar, aos poucos.

Passados que estavam os tempos conturbados, chegara a altura de tentar dar um rumo diferente à vida. Agora, mais a frio, acho que foi uma experiência proveitosa ter passado pelo país de Alice. Entristece-me apenas o facto de não ter sido sensibilizado para o que me esperava, pois quem conhecia a realidade omitiu-a, aparentemente sem motivo.

Krumlov

Canción para mi muerte

Hubo un tiempo en que fui hermoso
y fui libre de verdad
guardaba todos mis sueños
en castillos de cristal

Poco a poco fui creciendo
y mis fabulas de amor
se fueron desvaneciendo
como pompas de jabon

Te encontraré una mañana
dentro de mi habitación
y prepararas la cama para dos

Es larga la carretera
cuando uno mira atras
vas cruzando las fronteras
sin darte cuenta al pisar

Tomate del pasamanos
porque antes de llegar
se aferraron mil ancianos
pero se fueron igual

Te encontraré una mañana
dentro de mi habitación
y prepararas la cama para dos

Quisiera saber tu nombre
tu lugar, tu direccion
y si te han puesto telefono
tambien tu numeracion

Te suplico que me avises
si me vienes a buscar
no es porque te tenga miedo
solo me quiero arreglar

Te encontrare una mañana
dentro de mi habitacion
y prepararas la cama para dos

Charly Garcia

O sentido da vida

Se por um instante Deus se esquecesse de que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo o que penso, mas pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam.

Dormiria pouco, sonharia mais. Entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os outros param, acordaria quando os outros dormem. Ouviria quando os outros falam, e como desfrutaria de um bom gelado de chocolate.

Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto, não apenas o meu corpo, mas também a minha alma.

Meu Deus, se eu tivesse um coração, escreveria o meu ódio sobre o gelo e esperava que nascesse o sol. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas de um poema de Benedetti, e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à lua.

Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas...

Meu Deus, se eu tivesse um pouco de vida... Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas. Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo amor.

Aos homens provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar! A uma criança, dar-lhe-ia asas, mas teria que aprender a voar sozinha. Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento.

Tantas coisas aprendi com vocês, os homens... Aprendi que todo o mundo quer viver em cima da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta. Aprendi que quando um recém-nascido aperta com a sua pequena mão, pela primeira vez, o dedo do seu pai, o tem agarrado para sempre.

Aprendi que um homem só tem direito de olhar outro de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se. São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas não me hão-de servir realmente de muito, porque quando me guardarem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer...

atribuído a Gabriel Garcia Marquez

Não perdi nada...

E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente.

Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.

Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.

Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.


Miguel Sousa Tavares

terça-feira, setembro 13, 2005

Desejo

“Desejo primeiro que tu ames e que, amando, também sejas amado.

E que, se o não fores, sejas breve em esquecer e,
esquecendo, não guardes mágoa.

Desejo, pois que não seja assim, mas se for,
saibas ser sem desesperar.

Desejo também que tenhas amigos,
que mesmo maus e inconsequentes,
sejam corajosos e fiéis, e que em pelo menos um deles
tu possas confiar sem duvidar.

E porque a vida é assim, desejo ainda que tenhas inimigos;
nem muitos, nem poucos, mas na medida exacta para que,
algumas vezes, te interpeles
a respeito de tuas próprias certezas.
E que, entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
para que tu não te sintas demasiado seguro.

Desejo depois, que sejas útil, mas não insubstituível.
E que nos maus momentos, quando não restar mais nada,
essa utilidade seja suficiente para te manter de pé.

Desejo ainda que sejas tolerante;
não com os que erram pouco,
porque isso é fácil,
mas com os que erram muito e irremediavelmente.
E que, fazendo bom uso dessa tolerância,
tu sejas exemplo para os outros.

Desejo que tu, sendo jovem não amadureças depressa demais,
e que sendo maduro, não insistas em rejuvenescer e que,
sendo velho, não te dediques ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor
e é preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo por sinal que tu sejas triste,
não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubras que o riso diário é bom;
o riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que tu descubras, com o máximo de urgência,
acima e a despeito de tudo,
que existem oprimidos, injustiçados e infelizes,
e que estão à tua volta.

Desejo ainda que tu afagues um gato, alimentes um cuco e
ouças o galo erguer triunfante o seu canto matinal.
Porque assim, vais-te sentir bem por nada.

Desejo também que tu plantes uma semente,
por mais minúscula que seja... e acompanhes o seu crescimento,
para que saibas de quantas muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo que tenhas dinheiro,
porque é preciso ser prático.
E pelo menos uma vez por ano coloques um pouco dele
na tua frente e digas "Isto é meu",
só para que fique bem claro quem é o dono de quem.

Desejo também que nenhum dos teus afectos morra,
por ele e por ti, mas que, se morrer,
tu possas chorar sem te lamentares e sofrer sem te culpares.

Desejo por fim que, sendo tu um homem, tenhas uma boa mulher,
e que, sendo uma mulher, tenhas um bom homem.
E que se amem hoje, amanhã e no dia seguinte.
E quando estiverem exaustos e sorridentes
haja amor para recomeçar.”

In “ O DESEJO” de Vítor Hugo.